ARTIGO - MAS, AFINAL, O QUE É DANÇA CONTEMPORÂNEA?

 


O Primeiro Passo

A dança contemporânea muda nossa relação com o corpo e com a vida. Até quem não quer virar bailarino pode investir na prática como uma forma de autodescoberta

Por Priscilla Santos

Reportagem da revista Vida Simples - Edição de Setembro de 2007 

Mas, afinal, o que é dança contemporânea?

A maioria de nós consegue imaginar um bailarino de sapatilhas de ponta fazendo uma pirueta quando se fala em balé clássico, ou uma dançarina com uma sombrinha na mão realizando passos com a ponta do pé e o calcanhar quando o assunto é o frevo, por exemplo. Mas, quando se trata de dança contemporânea, a referência não aparece assim tão fácil. Pode ser que alguém tenha pensado num espetáculo do Grupo Corpo ou da Quasar Companhia de Dança, duas referências de dança contemporânea no Brasil. Mesmo assim, pode acontecer de você assistir a um espetáculo de cada uma dessas companhias e não ver sequer um passo comum. É que a dança contemporânea não é uma escola ou uma técnica específica, e sim um modo de pensar a dança que passou a ser desenvolvido em todo o mundo a partir da década de 70, depois de a dança moderna dar o pontapé inicial na quebra da hegemonia do balé clássico.

Ficou difícil? Pense na arte contemporânea como um todo. Hoje, é possível que você vá a uma peça de teatro em que os atores não tenham fala, a uma exposição em que os quadros não reproduzam a realidade. A dança contemporânea faz parte das artes contemporâneas, e todas essas artes se dedicam a falar das questões complexas e cheias de nuances de nosso tempo. Família, antigamente, era mãe, pai e filho. Hoje é o pai que casou com a mãe que tem filho de outro.

A dança contemporânea se dedica a falar das relações humanas, num mundo onde existe aids, casamentos que não duram a vida inteira, muita miséria e violência, afirma a crítica de dança Helena Katz.

O fato é que o mundo de hoje não é mais o mesmo de antigamente, as coisas mudaram. E a arte acompanhou essas transformações. Por isso, a dança teve que procurar novas abordagens. E de onde poderia partir essa dança que pretende falar das relações humanas senão do próprio homem? A dança contemporânea nos propõe uma investigação de nós mesmos através do corpo, nos convida a vasculhar cada detalhe para descobrir movimentos que expressem nossas emoções, dúvidas e pensamentos. E nos lança a questão: por que não encarar o corpo como uma forma de existir e de fazer trocas com o mundo? Assim, mesmo quem não pretende ser bailarino pode praticar aulas de dança contemporânea como uma forma de autoconhecimento.  

Conhece-te a ti mesmo

Se quisermos nos expressar por meio do corpo, é preciso antes conhecê-lo. Saber o que existe lá dentro. Quais são as direções dos ossos, músculos e articulações, esmiuçar cada detalhe como uma criança que desmonta um brinquedo para ver como funciona. Em geral, mantemos o corpo adormecido. Somos criados dentro de certos padrões e ficamos acomodados naquilo, escreve o bailarino e coreógrafo Klauss Vianna (1928-1992), criador da técnica de consciência corporal no Brasil, no livro A Dança. Esses velhos padrões vão criando as couraças musculares, que nos impedem de explorar as potencialidades do corpo e ainda nos geram aquelas dorzinhas chatas. É o jeito torto de deitar para assistir TV ou o hábito de ficar sentado o dia todo. Assim, acabamos usando alguns músculos demais e outros de menos, criando tensões desnecessárias.

É curioso, no dia seguinte a uma aula de dança contemporânea (como as que fiz para escrever esta reportagem), sentir uma dorzinha num músculo que você nem sabia que existia, ou se dar conta de que sempre botou o esforço no lugar errado na hora de fazer um movimento simples como levantar a perna. Numa aula, o professor pode propor que você massageie seu pé (ou o do colega) enquanto explica o nome de alguns ossos, suas funções e por aí vai.

Pois a dança surge de nossos processos internos, ou seja, de como nossos músculos se movem, como os ossos se encaixam e como colocamos emoção em nossa massa. Daí a idéia de buscar a dança que existe dentro de cada um. Para isso, é preciso estar atento ao corpo, o tempo inteiro. Para Klauss Vianna, a aula de dança começa pela manhã, quando abrimos os olhos na cama. O aquecimento interno ocorre na rua, no chuveiro, no trânsito. Assim, mudar a posição do sofá ou o local de dormir dentro da própria casa são estímulos que geram conflitos e novas musculaturas em nosso cotidiano: espaços novos, musculatura nova, visão nova. E não é só levar a dança para o dia-a-dia ou vice-versa. Mais que isso: reconhecer que essa divisão não existe, pois o corpo que dança é o mesmo que corre, brinca, come, ama e sofre. Quanto mais levarmos em conta essa dimensão existencial revelada por meio do nosso corpo, quanto mais considerarmos as dúvidas e os questionamentos que nascem na relação com o mundo exterior, mais proveitoso poderá vir a ser o trabalho realizado e tanto mais rico o resultado obtido, escreve Klauss.

Lei da gravidade

A professora, bailarina e coreógrafa Tica Lemos nos convidou a deitar no chão e fechar os olhos no início da aula. É uma convocação a entrar no mundo interior, não para relaxar, mas para focar, afirma. Aos poucos, vamos cedendo à gravidade, percebendo nosso peso e sentindo cada vez mais os músculos e ossos. Você vai ajeitando o corpo no chão como o pé ao calçar o sapato. E parece que ele vai se prolongando, vão se abrindo nossos espaços internos. Afinal, temos volume, não somos um boneco chapado. Tirar proveito dessa tridimensionalidade nos faz ampliar os movimentos e ganhar consciência de nossos limites. Onde meu corpo começa e termina? Que volume ocupo no espaço?

Da mesma forma que se preocupa com a anatomia, a dança contemporânea usa as leis físicas, como a gravidade e a força peso de nosso corpo, a favor do movimento. É da natureza o centro da Terra convidar o centro de massa de um outro corpo. É a atração das massas. Antes de se ter um acesso mais claro a esse raciocínio, tendia-se a forçar demais a estrutura muscular, diz Tica Lemos.

Por isso, muitas coreografias de dança contemporânea, tanto nos palcos quanto nas salas de aula, têm seqüências em que os bailarinos se entregam ao chão ou brincam com quedas, deslizes, variações de níveis de altura: sentar, deitar, estar de pé e cair de uma só vez ao chão. É claro que isso não é regra. Como você já deve ter percebido, regras e padrões passam longe da dança contemporânea. O fato é que suas coreografias tendem a mostrar de forma mais ampla a relação do corpo com o espaço, aproveitando as diversas possibilidades dessa interação. E, para fazer isso com consciência, gerando movimentos harmônicos, expressivos, cheios de intenção e, ainda, sem se machucar, é preciso conhecer nossos apoios, alavancas e, sim, ter força muscular. Mas não a força vinda da repetição mecânica de exercícios, como na musculação, e sim a que surge de movimentos conscientes. O coreógrafo Ivaldo Bertazzo, criador do método de educação do movimento, diz que, se nosso corpo se constitui de vários pedaços, o movimento nos possibilita juntar as peças e criar unidade.

Ok, desse jeito, você deve estar pensando que é preciso virar PhD em consciência corporal antes de dançar a primeira coreografia. Pois sou prova viva de que não. A aula de Denise Passos, no Estúdio Ruth Rachou, em São Paulo, começou com seqüências de quedas e giros. Fui seguindo conforme meus limites e olha que não dei vexame. O segredo está mesmo em saber onde se apoiar e, ufa, quanto a isso a professora vai orientando e em aproveitar o impulso de um movimento para iniciar o seguinte. É como se você desse o play no CD e uma coisa fosse emendando na outra, diz Denise. O que deixa os movimentos mais fáceis e prazerosos.

Improvisação

Se a dança contemporânea não tem passos preestabelecidos, como surgem as coreografias? A partir da liberdade de experimentar. E, numa sala de aula, o ambiente nos ajuda a soltar as amarras. Sabe aquele espelho tradicional das salas de balé? Muitas vezes é coberto por uma cortina. Música? Nem sempre. O som dos pés batendo no chão, os bocejos e balbucios podem tomar seu lugar, nas aulas e nos palcos.

Ao som de canções de viola, a bailarina e coreógrafa Lenira Rengel nos propôs um exercício de improvisação: traçar linhas imaginárias no espaço e percorrê-las com alguma parte do corpo. Em pouco tempo, vi meu repertório minguar e comecei a rezar para que o exercício chegasse ao fim. Ninguém improvisa do nada, tem que ter elementos. Tudo bem que ninguém é nada. Todo mundo tem uma educação, uma história, mas vai ser limitado se não houver um repertório corporal, diz Lenira.

Para ampliar esse repertório é preciso pesquisar os movimentos. O professor nos dá elementos, mas nós também os coletamos no cotidiano. E isso acontece o tempo todo, até de forma inconsciente: é uma pessoa que você viu no ônibus levantando o braço de um jeito xis, a forma como você virou no sofá para pegar o controle remoto etc. É escutar o corpo, como ele se relaciona com o ambiente. Quando você deita no chão, percebe se ele está quente ou frio, sujo ou limpo. O que o gelado ou a sujeira causam no seu corpo? Ao acordar essa percepção, você tem uma fonte quase inesgotável para criar, diz a professora e bailarina Zélia Monteiro.

Novos pontos de vista

A dança contemporânea nos permite desalojar velhos padrões não só de movimento, mas de formas de pensar. É preciso deixar de lado certos valores para se espreguiçar no chão ou improvisar mesmo sabendo que, para quem olha de fora, você pode parecer ridículo. A reconhecida coreógrafa alemã Pina Bausch escolhe os bailarinos não pela técnica, mas pelo que pensam. Para isso, passa dois ou três dias com as pessoas antes de elegê-las ou não.

Angel Vianna, professora, bailarina e companheira de vida de Klauss Vianna, diria que talento tem muito pouco a ver com dançar. É ao experimentar livremente que as capacidades se afloram. Para nós, leigos, a dança contemporânea já valeria por nos devolver o corpo como forma de expressar nossa individualidade. É como disse Tica Lemos: Uma pessoa pode passar ao largo do corpo durante a vida, mas isso é quase uma mutilação da capacidade humana.

Livros de Referência:

A Dança, Klauss Vianna, Summus
Angel Vianna A Pedagoga do Corpo, Enamar Ramos, Summus


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